Em dezembro de 2009 tivemos a oportunidade de conversar com os militantes do Movimento Aquarela da População de Rua (MAPR), levado a cabo em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Nesta entrevista, eles respondem questões relacionadas à conjuntura local, à questão dos moradores de rua, dos catadores de material reciclável, e do próprio movimento. O MAPR afirma que “a caminhada pelos direitos da população de rua é a própria luta de nosso povo oprimido, excluído e criminalizado, através de um processo histórico que se inicia desde a colonização e continua até hoje na busca de uma sociedade mais justa, livre, igualitária culturalmente e sem classes”. Afirmando os direitos das maiorias exploradas cultural, social e economicamente pelo sistema capitalista, o MAPR estabelece como princípios: organizar a população de rua, conscientizando-a de sua situação de opressão e exclusão; lutar por seus direitos e defender-se das violências e arbitrariedades; promover a educação em direitos humanos e lutar pela garantia desses direitos; defender a punição dos responsáveis pelas violações de direitos e a reparação das vítimas; garantir a autonomia do movimento para além dos interesses institucionais, partidários, considerando a pluralidade e reforçando sua opção de classe em favor dos oprimidos. Desta maneira, o MAPR entende estar caminhando para a construção de uma nova sociedade. A seguir você lê a entrevista na íntegra.
Felipe Corrêa (FC): Vocês poderiam nos explicar o que está acontecendo, em termos conjunturais, no Rio Grande do Sul, com o governo da Yeda Crusius, e especificamente em Porto Alegre, com o governo do José Fogaça?
Veridiana Machado: No Rio Grande do Sul, tanto na esfera estadual, com o governo Yeda Crusius (PSDB), quanto na esfera municipal, de Porto Alegre, com o prefeito José Fogaça (PMDB), temos projetos bastante parecidos em termos de concepção política.
O que está acontecendo? Governos bastante corruptos, que roubam e desfalcam os cofres públicos, e que, ao mesmo tempo em que são muito repressores, desmontam o setor público, por meio de suas políticas. Governos que também marginalizam os movimentos sociais e a pobreza.
No caso do governo estadual, não podemos deixar de mencionar o caso da morte de mais um colono sem terra, o companheiro Elton Brum, assassinado com um tiro pelas costas, de maneira covarde, e cuja versão do governo foi mentirosa. É este mesmo governo do estado que também reprime os professores, o movimento sindical, criminaliza e reprime a pobreza com a Brigada, que eles chamam de “braço forte do Estado”.
No caso do governo municipal, ele possui uma concepção higienista, enxotando a população de rua, sem resolver a questão, sem dar resultados efetivos para que esta população possa sair das ruas de uma forma mais humanista, e também sem dar sustentação a outras políticas públicas que venham a modificar esta realidade. Ao mesmo tempo, ele esvazia o setor público, por meio das terceirizações e privatizações, precariza o trabalho e leva a cabo este tipo de prática higienista.
Dentro da própria Fundação de Assistência Social e Cidadania a direção segue esta linha, e os funcionários que se opõem a ela, recusando-se a enxotar e retirar as pessoas da rua sem o encaminhamento de políticas públicas efetivas, também sofrem com assédio moral e perseguição.
FC: Dentro desta conjuntura, vocês poderiam dizer o que é o Movimento Aquarela e como ele se insere dentro do contexto da população de rua de Porto Alegre?
Sergio Carvalho: A proposta do Movimento Aquarela é organizar e conscientizar para uma luta que se dá tanto em relação à sociedade quanto aos governantes, exigindo uma solução. Eu não quero dizer uma solução que seja a retirada dos moradores das ruas, já que as condições em que vivem os moradores de rua vêm de uma questão que é social e podemos dizer que, em termos econômicos, ela é conseqüência do poder do capitalismo que enfrentamos, que é o grande responsável pela geração da pobreza.
A população de rua vive uma pobreza extrema, sem alternativas, soluções ou propostas apresentadas pelos políticos e governantes para enfrentar esta situação. Hoje, vemos indicado por pesquisas o crescimento desta população, mas este número apresentado nas pesquisas não é verdadeiro. Na última pesquisa que foi feita em Porto Alegre, sobre esta população, constatou-se que existem 1203 moradores de rua, mas na realidade este é o número de moradores que foram pesquisados. Nós, moradores de rua, que conhecemos bem esta realidade, sabemos que este número é muito maior, chegando aos 4 ou 5 mil.
Não vemos propostas do governo para uma política pública que apresente uma solução neste sentido. O Movimento Aquarela, a partir desta nossa avaliação, vê na organização uma forma de conscientizar a sociedade e também esta população de que é preciso mudar esta realidade, e que ela deve ser modificada não esperando que a mudança venha de cima para baixo, por parte dos governantes. O próprio morador de rua precisa estar consciente que ele deve se organizar e exigir dos governantes alguma alternativa, proposta ou política pública que possa oferecer uma condição de que ele, ainda que com o direito de permanecer na rua, possa buscar a sua dignidade e, de cabeça erguida, se reinserir nesta sociedade. Em termos produtivos, se reintegrar, no que diz respeito ao trabalho e à renda, que também são propostas do movimento. Desta forma será possível trazer sua dignidade e sua auto-estima por meio do trabalho e da conscientização de que, ainda que como um morador de rua, ele pode se reintegrar à sociedade, e deve ser tratado como um cidadão e um ser humano.
O Movimento Aquarela propõe a organização e sustenta o trabalho de todos do movimento, em parceria com entidades e articulados com outros movimentos que possam contribuir na luta, em relação a esta questão. Desta forma, podemos construir algo como uma bandeira de luta para levar a voz desta população na denúncia da violação de seus direitos, principalmente em relação à segurança pública. Esta é a forma de organização que defendemos. Vemos o Movimento Aquarela como uma saída, um movimento de luta pela dignidade de uma população que está no abandono. Se estamos abandonados, o único jeito é fazer isso mesmo.
FC: Vocês faziam parte do Fórum da População de Rua. Eu gostaria de saber um pouco sobre a relação do Movimento Aquarela com este fórum.
Zilmar Ribeiro: Esta relação do Movimento Aquarela com o Fórum da População de Rua está terminada. Isso porque havia um rapaz dizendo que ia fazer as coisas por nós, moradores de rua, mas na realidade ele nos enganava e não fazia nada dessas coisas; uma situação que não mudou. Ele prometia casas, roupas, calçados e até comida. Íamos às assembléias e as pessoas acabavam saindo chateadas com esse rapaz e, em conseqüência disso, essas pessoas agora estão fazendo ameaças a ele. As pessoas que estavam com ele neste fórum estão, neste momento, se separando e se juntando a nós.
FC: A partir desta perspectiva do Movimento Aquarela, como vocês vêem a relação entre a cidade e o processo de exclusão da população de rua, dos catadores e de outros sujeitos que estão na cidade em processo de exclusão?
Rejane Pizzato: Estamos vivendo um retrocesso em termos históricos, pois há diversas ações bem arbitrárias e todas as formas de manifestação são banidas, para tentar desmobilizar as resistências que existem em cada canto da cidade. Nós temos como desafio articular estas resistências e mostrar que, enquanto sujeitos desta cidade, temos que tomar parte em sua vida, articulando com os demais movimentos. Temos conhecimento histórico e ações nesta dinâmica do dia-a-dia das cidades e que, com oportunidades como por exemplo a Copa ou mesmo com outros eventos, poderemos discutir a organização a partir de onde e como estamos. Creio que o movimento está tendo esta visibilidade e podendo ocupar este espaço.
No passado tivemos movimento de luta pelos direitos dos moradores de rua, que em 1999 conquistou a participação de moradores de rua eleitos no Conselho Municipal. Isso foi uma vitória. Essa história caminhou, e hoje, com estes atores, podemos mostrar que existe esta parcela da população que está inserida neste contexto, que tem voz e que pode dizer o que quer e como fazer, junto com as outras forças e atores sociais.
FC: E como ficam, neste sentido, os catadores que também são sujeitos que estão sendo excluídos das cidades com este processo de higienização promovido pelo governo do estado e prefeitura? Quais são as alternativas que existem e as lutas que estão sendo travadas?
Veridiana Machado: Sabemos que todas estas práticas e esta concepção política higienista têm um porquê específico. Isso acontece em razão da privatização do lixo, já que o governo quer dar esta atividade da catação para as empresas, sendo que a catação é a única coisa que sobrou para estas pessoas sobreviverem em um país que não tem emprego, trabalho de qualidade e suficiente para todos.
Também com a Copa do Mundo, esta reforma urbana higienista cumpre um papel importante para os governantes da elite. Na cidade é feito um apartheid territorial, e a cada shopping que abre, uma vila vai para longe na periferia.
Sobre a questão dos catadores, em Porto Alegre passou uma lei do Sebastião Melo do PMDB (o mesmo partido do prefeito atualmente), que vai proibir em até oito anos carroceiros [tração animal] e carrinheiros [tração humana] de fazerem suas atividades nas ruas da cidade. Isso quer dizer que o problema não era os cavalos que estavam sendo maltratados, já que estender esta lei aos carrinheiros, que puxam suas carroças com o próprio corpo, só pode ser uma limpeza e uma reforma urbana de modelo higienista.
O que nosso movimento tem feito em termos de articulação é abrir espaços de formação política e de troca com a representação regional do movimento nacional dos catadores (MNCR), como fizemos em 2008, com dois encontros que foram muito importantes para a formação política. Utilizamos um mapa, com uma metodologia bastante simples, em que as pessoas que pensavam nisso pela primeira vez puderam se enxergar no mapa da cidade e visualizar qual a relação que isso tem com o Banco Mundial e com todo este projeto nacional e internacional de gestão política para a classe dominante e para o poder vigente.
Gostaria de reforçar a questão de o Movimento Aquarela estar se encontrando no Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA), articulando com estes funcionários que defendem uma política diferenciada de assistência social, que também estão sendo marginalizados por defenderem a autonomia do usuário, e que ele tem que ter o controle social e poder caminhar com as próprias pernas.
O espaço sindical é um espaço de luta e deve abrir suas portas para que os movimentos sociais se organizem e se articularem tendo total apoio. Por isso escolhemos o espaço do SIMPA, onde acontecem semanalmente nossos encontros. Lá também utilizamos recursos, como material para panfleto, carro, que também são recursos do sindicato. Ao invés de usar estes recursos com a burocracia sindical, nós entendemos que o espaço deve ser ocupado para que os movimentos sociais tenham acesso a esse espaço e a esses recursos.
Contatos com o movimento: movimentoaquarela@gmail.com
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